O escritor checo Milan Kundera, de 88 anos, nasceu em 1929 em Brno, na ex-checoslovaquia, hoje retalhada em suas etnias.
Transferiu-se para Paris em 1975 (ele e outros intelectuais checos participaram ativamente da Primavera de Praga, um ensaio de independência comandada pelo primeiro-ministro Alexander Dubcek que foi duramente reprimida pela URSS). Passou a escrever seus romances e ensaios em francês.
Ficou famoso com seu romance “A Insustentável Leveza do Ser”, de 1982. Traduzido para mais de trinta línguas e editado em inúmeros países, conjuga enredos erótico-amorosos com a descrição de um tempo histórico politicamente opressivo e à reflexão sobre a existência humana como um enigma que resiste à decifração. Quatro personagens protagonizam essa história: Tereza e Tomas, Sabina e Franz. Por força de suas escolhas ou interferência do acaso, cada um deles experimenta, à sua maneira, o peso insustentável que baliza a vida, esse permanente exercício de reconhecer a opressão e de tentar amenizá-la.
Bem, todo mundo de um jeito ou de outro ouviu falar na insustentável leveza do ser. Senão do livro, ao menos do filme de 1987, com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin nos principais papéis, com direção de Philip Kaufman.
Pois o que poucos sabem é que a música é nuclear em Kundera: expõe a estrutura formal básica sobre a qual ele construiu toda a sua obra. Mais do que isso. Ele estudou música pra valer, e em diversos livros essenciais de ensaios trata primordialmente de música a sério, e em profundidade: “Testamentos Traídos” (1993), “A Cortina” (2005) e “Um Encontro” (2009) tratam de universos distendidos no tempo.
Kundera tem preferência pela música do século 20. E em sua lista o primeiríssimo nome sem dúvida é o de Leos Janacék (1854-1928). O que o escritor mais gosta em Janacék é o modo como ele transfere acentos e sotaques da língua checa para a estrutura de sua música.
Um exemplo é o modo como Janacék trata a parte vocal de As Aventuras da Raposa Astuta, que estabelece um universo ao mesmo tempo mágico e poético, onde os animais da floresta exprimem sentimentos finalmente pouco diferentes dos seres humanos.
Profundamente habitada pelo espírito da infância, esta ópera celebra a natureza e os seres que a povoam. A escritura de Janácek desenha uma paisagem impressionista, que o leva a uma das obras mais finas de seu repertório:
1.aventuras da raposa astuta: Montagem 17º Festival Amazonas de Ópera: trecho: 17º Festival Amazonas de Ópera (FAO) | Direção Musical e Regência: Marcelo de Jesus | Barítono Homero Velho (Caçador), Soprano: Maíra Lautert (A Raposa Astuta), Baixo: Murilo Neves (Harashta)
2. Janacék construiu sozinho sua linguagem musical pessoal a partir das inflexões da língua checa. Ele chamava sua técnica de “melodias da fala”. Sua produção coral é grande e pouco conhecida. Ouça o coro de câmara francês Accentus em uma peça despretensiosa de 1885, “O pato selvagem”.
Na sequência, “Fonte das lágrimas”, peça da maturidade, escrita durante a Primeira Guerra Mundial mas só executada em 1923, é notável pelo modo como Janacek faz a flauta dialogar com a soprano solista e com o conjunto das vozes femininas.
Em “Elegia sobre a morte de minha filha Olga” para tenor, coro e piano, de 1903, a voltagem emocional sobe muito. Na primeira, brilham a soprano Caroline Chassany e a flautista Raquele Magalhães; na segunda, o tenor Romain Champion. Sem falar na afinação e precisão do Accentus, regido por Pieter-Jelle de Boer:
3. a fuga, terceiro movimento da sonata opus 110 de Beethoven; Kundera: “No curto espaço de 10 minutos, esse terceiro movimento (incluindo seu curto prólogo, o recitativo) se distingue por uma extraordinária heterogeneidade de emoções e de formas; no entanto, o ouvinte não se dá conta, já que essa complexidade tem um ar natural e simples.” (Que isso sirva de exemplo: as inovações formais dos grandes mestres têm sempre alguma coisa de discreto; assim é a verdadeira perfeição; é apenas nos pequenos mestres que a novidade quer se fazer notar). Emil Gilels toca o terceiro movimento da sonata op. 110 de Beethoven: Adagio ma non troppo – Fuga. Allegro non troppo:
4. Kundera: “Penso nas Bodas de Stravinsky (1923): um retrato de um casamento camponês; ouvem-se canções, barulhos, discursos, gritos, chamados, monólogos, brincadeiras numa orquestração (quatro pianos e percussão) de uma brutalidade fascinante”. performance de Valery Gergiev regendo solistas e integrantes da Orquestra Sinfônica de Londres:
5. Iannis Xenakis (1922-2001) – compositor grego radicado na França. Kundera sobre a obra do compositor: “Aprendi a amá‑la durante a época mais negra de minha vida e de meu país natal. Mas por que eu procurava o alívio em Xenakis e não na música patriótica de Smetana, na qual poderia encontrar a ilusão de perenidade de minha nação que acabava de ser condenada à morte? (…) E nós nos sentimos engolidos por outra civilização. No interior do império russo tantas outras nações estavam perdendo até sua língua e sua identidade. E eu de repente me dei conta dessa evidência (dessa espantosa evidência): a nação checa não é imortal; ela também pode não ser. Sem essa ideia obsessiva, minha estranha ligação com Xenakis seria incompreensível. Sua música me reconciliou com a inelutabilidade da finitude”.
ouça Okho, peça para trio de percussão, escrita por Xenakis a propósito das comemorações dos 200 anos da Revolução Francesa. Os intérpretes são o Peabody Trio Percussion, daquela escola norte-americana:
6. “Electronic Preacher” – Apocowlypso: hilária, ridiculariza os pastores de televisão norte-americanos que infestam o país.